A história da primeira tenista transgênero em uma competição feminina
Muito antes de Caitlyn Jenner, Laurel Hubbard ou mesmo Lia Thomas, houve Renée Richards. Estrela do tênis nas décadas de 1950, 1960 e 1970, ela foi a primeira atleta a competir em torneios femininos após a transição.
Não foi um caminho fácil, e Richards passou muito tempo nos tribunais lutando pelo direito de competir no campo que correspondia à sua identidade de gênero.
Nascida e batizada como Richard Raskind em 1934, em Nova York, Renée era uma atleta e estudante naturalmente talentosa, destacando-se em ambas as áreas durante seu tempo em Yale e na Universidade de Rochester, enquanto concluía seu diploma de medicina.
Mas foi no tênis que ela realmente se destacou, tornando-se uma jogadora competitiva no circuito masculino, chegando a disputar o US Open cinco vezes entre 1953 e 1960. Durante esse período, ela também trabalhava em tempo integral como oftalmologista, especializada em cirurgia de músculos oculares, conforme relatado pela 'Sports Illustrated' em 2019.
Raskind parecia ter tudo resolvido: era um cirurgião altamente bem-sucedido em Manhattan, casado com uma modelo, jogava tênis no mais alto nível e até obteve sua licença de piloto. No entanto, as coisas não eram tão fáceis para ele quanto aparentavam na superfície.
Raskind lutou com questões de identidade de gênero durante toda a vida, o que acabou levando à decisão de realizar a transição em 1975. Após passar por uma cirurgia de redesignação de s e x o, ela se apresentou como Renée Richards, iniciando um novo capítulo tanto em sua vida pessoal quanto em sua carreira.
"Não era que eu sentia que precisava fazer algo a respeito disso", disse Richards à Sports Illustrated, em 2019, ao refletir sobre sua decisão. "Eu não tive escolha."
O retorno de Richards ao tênis como mulher gerou uma grande controvérsia. A crença predominante era de que uma mulher transgênero teria uma vantagem injusta nos esportes femininos devido aos atributos físicos masculinos, como destaca uma retrospectiva da BBC.
A Associação de Tênis dos Estados Unidos (USTA) impediu Richards de competir no US Open de 1976, o que a levou a entrar com um processo judicial contestando a decisão. Em 1977, ela ganhou um caso histórico na Suprema Corte de Nova York, cujo julgamento afirmava que ela tinha o direito de competir como mulher.
A decisão foi inovadora, não apenas para Richards, mas também para o reconhecimento dos direitos transgêneros no esporte. No entanto, para ela, não se tratava apenas disso. "Eu nunca tive a intenção de jogar no US Open... mas quando disseram que eu não podia jogar, isso mudou tudo. Eu disse que não podiam me dizer o que posso ou não posso fazer – sou uma mulher e, se quero jogar no US Open como mulher, eu vou fazer isso", contou à BBC.
Uma das principais evidências que influenciaram os juízes a favor dela foi o depoimento de uma testemunha importante: Billie Jean King. King era uma ex-número um e ainda estava jogando no circuito, apesar de já ter conquistado o status de uma grande lenda viva.
King assinou uma declaração afirmando que havia passado tempo com Richards e que acreditava que Richards era uma mulher. Isso foi suficiente para convencer o juiz e a Associação de Tênis de suas credenciais.
Apesar da decisão, Richards enfrentou críticas severas do público e da mídia. Muitos acreditavam que sua participação no tênis feminino era injusta, e sua trajetória foi marcada por ceticismo e hostilidade.
"Eu recebi ameaças de morte, havia pessoas que me odiavam, pessoas que me diziam que eu era imoral, e pessoas que me chamavam de coisas horríveis," disse Richards à BBC. "Algumas jogadoras saíam da quadra quando eu jogava contra elas e não queriam jogar comigo de jeito nenhum. No começo, houve muita objeção, mas, finalmente, elas perceberam que eu era uma pessoa normal e que não ia tirar o dinheiro de ninguém, e gradualmente muitas daquelas que estavam contra mim acabaram se tornando grandes amigas."
Após a decisão judicial, ela competiu em vários torneios de tênis feminino, incluindo o US Open, onde alcançou a final de duplas em 1977. Embora não tenha alcançado o mesmo nível de sucesso no tênis feminino que teve no circuito masculino, seu impacto foi, sem dúvida, muito maior.
Richards continuou jogando nos Estados Unidos até se aposentar em 1981. Apesar de ter sido banida de torneios na Europa, ela chegou brevemente à 20ª posição no ranking mundial da Associação de Tênis Feminino.
A contribuição de Richards para o esporte e os direitos transgêneros vai muito além de suas conquistas individuais. Seu caso jurídico estabeleceu um precedente para a inclusão de atletas transgêneros em esportes profissionais, influenciando políticas em organizações como o Comitê Olímpico Internacional (COI), que posteriormente adotou diretrizes para a participação de transgêneros nas Olimpíadas.
Os debates em andamento sobre justiça, identidade de gênero e competição que estamos tendo hoje, com pessoas como Lia Thomas (na imagem) ou até mesmo Blaire Fleming e a equipe de vôlei da SJSU, estão profundamente enraizados no caminho que Richards abriu. Não que ela esteja interessada em tudo isso.
Ao longo de sua vida, Richards expressou ambivalência sobre seu papel como pioneira. Em entrevistas, ela enfatizou que nunca buscou ser uma defensora dos direitos transgêneros. Em vez disso, ela apenas queria viver de forma autêntica e continuar sua paixão pelo tênis.
Ela resumiu sua posição sobre o assunto em 2019 à Sports Illustrated: "Eu penso no meu pai, que ficou perplexo quando o telefone não tinha um fio conectado a ele, eu fico quase tão perplexa com algumas dessas coisas," disse Richards, que completou 90 anos em 2024. "Eu me mantenho fora disso. Eu sei quem sou. E eu sei quem eu fui e como me tornei o que sou."